terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Patagonia Expedition Race 2012

Punta Arenas (Chile), 14 de fevereiro de 2012.

Carla Goulart, Felipe Fuentes, Fernando Nazário e eu formamos uma equipe para participar do Patagonia Expedition Race, uma das provas de Corrida de Aventura que está entre as mais duras do mundo, contando com a nata dos atletas de endurance mundiais. A distância total era de 565 km, divididos em seções de mountain bike, trekking e canoagem. As Corridas de Aventura são provas expedicionárias "non-stop" disputadas em quartetos, utilizando mapas cartográficos e bússolas para se orientar. Fomos aceitos no rigoroso processo seletivo da prova e nos preparamos durante mais ou menos 10 meses, com ajuda de patrocinadores para amenizar as salgadas despesas. 

A lista de equipamentos obrigatórios exigidos é grande, e uma prática comum entre todas as equipes é alugar muitos deles diretamente com a organização, o que previne altos custos com excesso de bagagem. Entre os equipamentos que alugamos estavam as "saias", utilizadas em canoagem oceânica, e servem para prevenir a entrada de água nos cockpits dos caiaques. Porém, em águas geladas e mar agitado, as saias precisam ser de neoprene, material mais eficiente na vedação. Por algumas questões nossas de logística e trabalho, fomos a última equipe a desembarcar em Punta Arenas e retirar os materiais alugados com a organização, mas não haviam sobrado saias de neoprene para nós. Restaram apenas quatro saias de nylon, que não são nem mesmo resistentes à água. Assim começou nosso problema.

A largada foi na madrugada do dia 14. Já no decorrer da prova, fizemos a transição de uma "perna" de pouco menos de 70 km de mountain bike em sentido sul de Punta Arenas para entrar em uma seção de canoagem no Estreito de Magalhães em caiaques oceânicos, que teria distância total de 84 km. Todas as equipes deveriam remar até a Terra do Fogo, passando pela Ilha Dawson.

Nas primeiras duas horas de canoagem estava tudo bem, apenas o Fernando vomitava por causa da ondulação do mar - o famoso seasick. Eu tive que remar sozinho por isso (os caiaques eram para duas pessoas, e ele estava comigo), mas mesmo assim tínhamos uma boa progressão, pois seguíamos uma boa corrente.

Mas como é de praxe na Patagônia, os ventos aumentaram e o mar ficou muito agitado, trazendo ondas grandes que cobriam os caiaques. Progressivamente, a água passava através das saias de nylon, enchendo os cockpits, o que tornava os caiaques muitos instáveis, quase virando o tempo inteiro. Caiaques oceânicos dificilmente afundam pois existem compartimentos com bolsas de ar dentro, mas eles podem virar. Se os caiaques virassem seria perigoso, pois com a agitação do mar, se alguém desgrudasse seria difícil nadar e voltar para eles. O mar arrastaria um exímio nadador.

Primeiro procedimento: utilizamos as bombas para a sucção de água - outro equipamento obrigatório, mas naquele momento foram ineficazes, pelo tamanho das ondas. A cada litro retirado, cinco litros entravam. Estávamos todos com água cobrindo as pernas, quadris e uma parte do tronco, e a temperatura da água era de 4oC. Mesmo usando dry suits (vestimentas obrigatórias que protegem através de isolamento térmico e impedem a água de entrar), estávamos com muito frio, e a costa mais próxima estava a aproximadamente 7 km. 

Bom, tínhamos um problema.

Segundo procedimento: pedir ajuda. Telefones celulares eram proibidos em toda a prova, mas todas as equipes carregavam um telefone via satélite lacrado como equipamento obrigatório, que só poderia ser usado em caso extremo e para pedir resgate. A abertura da caixa deste telefone acarretava uma desclassificação automática da equipe. Após uma dura decisão em conjunto, quebramos o lacre e abrimos a caixa do telefone.

Mas não havia sinal de satélite; tentei por algum tempo, consegui um pequeno "alô" do outro lado da linha, mas perdemos o sinal novamente. O Felipe me avisava a cada onda para que eu levantasse o telefone - que não é a prova d'água - o mais alto que eu pudesse para não molhar. Porém em um momento uma onda maior nos cobriu, nosso telefone molhou e não funcionou mais.

Terceiro procedimento: unir os dois caiaques para dar maior estabilidade, e remar para algum lugar. Já estávamos com muito frio, uma verdadeira luta contra o tempo. Nesse momento já havíamos perdido todas as outras equipes de vista e estávamos sozinhos no mar. Então bora remar, galera!

Nos revezamos nas tarefas: enquanto dois seguravam fortemente os caiaques para mantê-los unidos e assim criar estabilidade, os outros dois remavam. Como os remos de caiaque são duplos e podem ser divididos ao meio, separamos as pás e remamos em estilo canoa havaiana, com uma pá de cada lado do caiaque. Fernando estava bastante hipoglicêmico por causa do enjôo, mas mesmo assim ele conseguiu ajudar e fazer força. E assim seguimos. Felipe e Carla, sempre positivos e serenos. Remamos por aproximadamente 5 horas com os caiaques cheios de água e por isso bem pesados, o que era bem desgastante. Além da água, todo nosso equipamento estava nos caiaques, como as 4 mochilas de mais ou menos 15kg em cada, com equipamentos obrigatórios que incluíam barraca, sacos de dormir, primeiros socorros, comida, etc.

Cantamos para nos manter quentes e acordados. Quando nada mais adiantava e já estávamos algumas horas sem praticamente sentir nossas pernas, vimos um jato de água vertical a apenas 50 metros à nossa frente. Uma baleia. Então ela nos mostrou o dorso e submergiu novamente, era uma jubarte. E então outro spray de água. Um baita susto, mas de certa forma isso nos trouxe energia bem em um momento em que estávamos fracos e sonolentos por causa da hipotermia.

Conseguimos entrar em uma outra corrente que nos empurrava para uma parte mais ao norte da Ilha Dawson, ajudando bastante a progressão dos caiaques. Por fim, algumas ondas nos arremessaram em direção à ilha. Assim que chegamos em terra firme não consigo me lembrar de muita coisa, pois logo que saí do caiaque, já praticamente inconsciente pelo frio somado ao esforço físico, tentei caminhar mas minhas pernas não responderam. E então eu caí de cara no chão. Fiquei apagado durante aproximadamente duas horas. Segundo os médicos que nos socorreram depois, isso ocorreu por causa do esforço físico para remar com os caiaques cheios de água, somado à hipotermia grave, de terceiro grau.

Existem os seguintes graus de hipotermia:
  1. Leve: frio, tremores, espasmos. As extremidades do corpo apresentam tonalidade cinzenta ou levemente arroxeada. Confusão mental.
  2. Moderada: os tremores começam a desaparecer, a pessoa tende a ficar muito sonolenta, prostrada, quase inconsciente, com rigidez muscular, alterações na memória e na fala.
  3. Grave: a pessoa fica imóvel e inconsciente, as pupilas se dilatam e a freqüência cardíaca diminui, se tornando quase imperceptível. Se o paciente não for devidamente tratado, a morte é inevitável.
Os outros integrantes da equipe, mesmo fracos e também com hipotermia, rapidamente acharam um lugar seguro e abrigado dos ventos em um bosque um pouco acima da praia. Apoiei no Felipe e ele me ajudou a chegar lá. Todos tiramos as roupas molhadas e entramos em nossos respectivos sacos de dormir para nos aquecer.

Acordei dentro do meu saco de dormir, e vi a Carla ao meu lado no dela; os meninos montaram acampamento, fizeram comida quentinha no fogareiro.

Após algumas horas fomos resgatados por um navio da marinha que acompanhava a prova e tudo ficou bem. Fomos pra dentro do navio, chá e comida quente, banho. O resgate durou um dia inteiro, e mais alguns dias de transportes para chegarmos de volta ao hotel em Punta Arenas.

Segundo o pessoal da marinha e médicos do navio, uma pessoa sem um dry suit sobreviveria à água com esta temperatura somente entre entre 4 e 7 min. Com os dry suits que usávamos, sobreviveríamos no máximo 15 minutos. Fomos contra esta teoria, e sobrevivemos por 5 horas com parte dos nossos corpos submersa. 

Não cruzamos o pórtico, mas correr ao lado dos campeões mundiais e ídolos foi sensacional. A organização assumiu o erro, nos devolveu o dinheiro do aluguel dos equipamentos, e nos deram a inscrição da edição de 2013. Ainda considero o Patagonia Expedition Race uma prova extremamente bem organizada. A logística é enorme e complexa. 

Após a prova meus dedos continuaram com dormência e quase nenhuma sensibilidade por pouco mais de um ano, mas depois voltaram ao estado normal, felizmente.

Gostaria de agradecer aos meus companheiros de equipe, por serem as pessoas certas no momento certo, e pela resiliência inabalável. Isso realmente é uma coisa que não conseguirei descrever com palavras.


Equipe Go Crazy, dias antes da largada


4 comentários:

  1. putz velhinho vc quase foi...teu nome não é guerra a toa!!!conseguiu sair dessa!!!vcs são fodas!!! muita saude para vc!!! um grande abraço!!! alex

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  2. poxa Leo, to de cara com o que aconteceu, so tenho que parabenizar vc e sua equipe pela força e uniao.
    torço por vc´s.
    abs

    luizinho

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  3. Doidera viu! Ainda bem que não aconteceu nada pior!

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