sexta-feira, 11 de março de 2011

Conto Literário: “Quem pegou a piaparinha?”, de Eduardo Guerra França

Tenho o dever e o prazer de apresentar este conto, tanto pela tamanha riqueza literária, quanto pela minha admiração ao autor, meu irmão Eduardo Guerra.



“Quem pegou a piaparinha?”
do livro  “O Bazar de Inutilidades”, de Eduardo Guerra França

  “primavera                      
             não nos deixe
pássaros choram             
lágrimas                         
             no olho do peixe”
            Matsuó Bashö


A manhã era clara como o inventarmos ir pescar naquele dia. E saímos ainda bem cedo para o rio São João, em Argenita. Um distrito de Ibiá, essa Argenita, uma pequena comunidade rural, deliciosa em sua história e sua natureza rica que é mãe-boa! Ibiá encosta as suas beiras na cidade onde nasci: Araxá.

Queríamos bagre, piau, papaterra, traíra, lambari, o que viesse. Com todos os apetrechos à mão e numa bela manhã, felizes, eu, meu avô, pais, tios e primos, iríamos pegar peixes gordos. Havíamos esquecido as minhocas! Foram, os tios, até uma fazenda próxima, arrancar outras. Fiquei por ali mesmo, no meio da pedra.

A pedra cercada pelas águas piscosas do rio. Meus oito anos de vida me davam a posse daquela pedra, porque a natureza pertence às crianças. Lívia, minha irmã, brincava, e não estava nem aí para mim, nem para nada. Eu, com a vara de pescar, brincava de helicóptero de matar morcegos. Zimm, zimmm, ziiinnnnnmm. Não havia isca para pescar nem adultos por perto. As tias e minha mãe deviam estar preparando algum lanche, ou caipirinha. Comecei a bater com o anzol na água, com o anzol e a chumbada. Rodava e batia na água – descobri o zimmm-tclóc! Batia daqui e de lá, no rio, rodava a linha por sobre a cabeça. O anzol entrava na água e o som que produzia era delicioso. Então veio um peixinho pendurado pelo anzol sem minhoca, enganchara próximo à cauda, no dorso. Quando o puxei, veio no ar descrevendo uma parábola e se contorcendo alternadamente para um lado e para outro, veloz. Peixe prata-azulado é como me lembro, tinha quinze centímetros. O anzol fisgara por acaso seu dorso. Tirei o peixe com cuidado e com ele na mão assuntei; matutei, repensei. Avistei uma depressão na pedra, com água. Pus o peixe naquele buraco cheio d’água. O peixinho nadava na água represada e eu brincava ali com ele. Fui pescar daquele jeito de novo, esperançoso, lá na beira da pedra, mas não peguei nada, mais nada. Eu só me divertia.

O primeiro a aparecer na pedra foi meu avô Zé Guerra, viu o peixe no meio da pedra, e me deixou então saber qual peixe era aquele: – “Olha, uma piaparinha! Como veio parar na pedra?” – contei a história e mostrei a ferida no lombo do peixe. O vovô me olhou de lado, elogiou que com aquela idade eu já soubesse histórias de pescador... Nenhum dos adultos aceitou minha versão dos fatos. Livinha brincava com outras coisas e nem se interessou por aquilo, não viu nada. Me vi sozinho com uma piapara que era minha única testemunha do fato tão estranho e divertido. Mas se chamava lindamente Piapara. Piapara, Piapara... esse nome reboava na minha mente como água de rio nas pedras, como um côro de sapos. Aos poucos a piapara foi parando seu contorcionismo na água. Parecia que estava descansando ou dormindo. Ficou totalmente parada e logo boiou na água. Tentei ajudar empurrando para o fundo e percebi que a água estava morna, muito morna. Naquele instante senti o calor da pedra. O sol generoso cozinhando minha piapara antes que meus tios, meus pais, e todos os adultos acreditassem naquilo. Meu avô não quis ser cúmplice. E a piapara estava morta.

Hoje me atormenta que eu não tenha devolvido à água a pobre piapara – senti vergonha de ter retido o peixe numa piscina de água morna no meio da pedra. O buraco com água imitava uma panela incrustada na pedra. Mas eu era só uma criança, só queria deixar uma “prova material” do meu sucesso naquele tipo de pesca sem minhoca. A piaparinha era minha certidão de pescador ali naquela hora. Prova inútil...

Minha relação com a poesia repete essa história da piapara. No rio piscoso da linguagem e da palavra os poemas são peixes que grudam às pedras do fundo e no lodo, caçam insetos na superfície, deslizam no leito d’água. Pesco poemas nesse curso do rio. Uso isca, rede, tarrafa, anzol. Jogo uma quirela de milho e uso até isca artificial. Clara a minha intencionalidade fisga-verso. Mas os melhores peixes que se extrai da língua são fisgados de revestrés, pela cauda. Na intenção desinteressada de quem apenas brinca, entretendo os pensamentos fora da mente.

Uma vez ou outra na vida fisgamos assim piaparas! O desejo é manter fora d’água estes achados especiais. Tentamos encher o balde-livro com peixes-poemas vivos. Permanecem vivos, e antes que nossos amigos sorriam com a gente por aquela maravilha pescada, vão deixando escapar a vida, como escapa a água no rio. Em breve serão apenas olhos parados de peixes cozidos e asfixiados... São tantas as piscinas na pedra quente com sua água morna... Só temos para mostrar poemas cozidos pela razão e pela intelectualidade, não mais ao vivo. Mas existem aqueles poemas que vivem nos aquários especializados, onde se quer fazer sua reprodução em cativeiro.  O peixe-poema que inventa um viver fora d’água, fora da linguagem. Ora, não há rio de água parada... Um rio tem que respirar!

O bom mesmo é quando enfio os pés na água e fico quietinho. Enquanto estou roubando poemas dos pássaros, os peixinhos miúdos vêm limpar as unhas dos dedos dos pés, mordiscar os dedos, fazer cócegas, levando-me de volta à água, ao fluxo e à temperatura do rio-linguagem. O bom mesmo é quando o lambari escorrega por entre os dedos e, gargalhando na liberdade, retorna ao rio. E é bom quando os peixes fazem o pescador cheio de iscas ir embora de embornal vazio.

Se há função, relevância e utilidade em pescar poemas – talvez para saciar um certo tipo de fome – estará essa utilidade no “poder falar” para os meus netos, para as gerações vindouras. Poder falar-lhes que existiam piaparas, traíras, papaterras, cascudos, piabas, lambaris, e toda a sorte de peixes nas então “águas claras da linguagem”.

Os meus netos insistirão em que essas histórias de pescador conectam um absurdo: – “Como pode hoje a linguagem conter esses seres que não conhecemos e a que você se refere como sendo uma enorme variedade de peixes-poemas?... Piaparas..., conta outra, vovô!” – (Asseveram do futuro, os meus netos:) – “Mas vovô... nos rios... não mais seres vivos, vovô... não há.” – (os netos pensam que sabem de tudo...)!
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