Às 8 horas de uma quente manhã de quinta-feira, na montanhosa cidade de São João da Boa Vista, foi dada a largada de mais uma Brazil 135+, tradicional e mais dura ultramaratona brasileira, com atletas de 10 países, preparados para o pior.
Estreante na prova, minha ideia era tentar correr os 253,2 km em 60h, pois o corte era após 62h30min. Ou seja, se eu demorasse mais que isso para cruzar a linha de chegada, eu seria cortado da prova, e meu tempo não seria oficialmente válido. Mas são muitos obstáculos que podem tirar o corredor de uma ultramaratona, como bolhas, hipoglicemia, desidratação, hiponatremia (desequilíbrio de eletrólitos no sangue, podendo causar edema cerebral e até morte), torções e lesões diversas, proteólise (quebra de proteína muscular, resultando em perda de massa magra), fadiga muscular, irritação estomacal, vômitos, diarreia, entre outros. Mas ainda considero a cabeça o nosso pior monstro, o mais implacável e impiedoso (além de único) inimigo real, capaz de acabar com você. Se ela não está bem, todo o resto será comprometido.
Minha equipe de apoio era composta pela Adriana Scaranti, experiente ultramaratonista e grande amiga, e pela minha mulher Bianca Lessa, corredora de montanha casca-grossa, que leva em seu ventre nosso(a) filho(a). Essas grandes mulheres me ajudaram muito antes, durante e depois da prova. Quando as encontrava nos pontos combinados, eu tinha massagem, comida quente, meias secas, pomadas para os pés.
O fato de eu ser vegetariano não atrapalha em absolutamente nada meu rendimento, e consigo obter todos os nutrientes que preciso sem precisar assassinar nenhum ser senciente. Minha principal fonte de alimentação vem da comida: macarrão, arroz com grão de bico e amêndoas, bolo de tapioca, rapadura, batata, inhame, beterraba, frutas. Também levei mel, géis de carboidrato, energy balls (uma bola compacta que fazemos com grãos), e doses de whey protein para intervalos de tempo regulares. Para hidratação, isotônicos em pó, cápsulas de sal, e principalmente soro em pó.
Mas a minha maior motivação foi a campanha que fizemos para arrecadar doações para o Cantinho do Céu, um hospital de Ribeirão Preto que cuida de crianças com paralisia cerebral. Eu me lembrei disso durante todo o Caminho, mentalizando as crianças e o quanto podíamos ajudá-las com ações simples. Este se tornou o maior objetivo da corrida para mim, pois não me faz mais sentido correr longas distâncias apenas para satisfazer meu ego.
No primeiro trecho, entre São João da Boa Vista e Águas da Prata, cruzei o paratleta norte-americano Andre Kajlich, em sua cadeira de rodas. O que vi me deu forças para toda a prova: uma subida íngreme onde Kajlich segurava no braço as rodas de sua cadeira, alternando com empurradas homeopáticas para continuar progredindo. Dois atletas apoio dele ficavam na retaguarda, sem tocá-lo, apenas de prontidão atrás da cadeira, para evitar que ele perca o controle e a cadeira desça a rampa de ré. Menos de um minuto depois que o cruzei, atravessamos pela lateral uma cerca fechada, e entremos em um singletrack (trilha única, parecida com um caminho de vaca), ligeiramente técnica. Durante toda a trilha, eu não parava de me perguntar como seria a progressão de Kajlich e sua cadeira por este trecho.
Passei duas noites especiais no Caminho, onde mal usei minha lanterna de cabeça. A irradiante lua cheia iluminava todo o caminho, cobrindo com sua luz branca as montanhas da Serra da Mantiqueira. Fiquei longos períodos sem encontrar ninguém, em uma espécie de retiro espiritual, apenas com a companhia de gambás e cães de fazendas.
E a prova só piorava a cada trecho, cada quilometro. Subidas cada vez mais frequentes e íngremes à medida que o cansaço e sono batiam. Mas a sintonia com minha equipe de apoio era cada vez mais afiada, e nos comunicávamos muito. Elas pareciam saber exatamente o que eu precisava a cada trecho que nos encontrávamos, qual tipo de comida ou bebida eu gostaria/conseguiria ingerir naquele momento, que horas eu gostaria de dormir. E por falar em dormir, isso fiz bastante, em basicamente duas paradas longas: a primeira, quando dormi 1h (em Borda da Mata), e a segunda, 1h30 (em Paraisópolis), ambas em meu aconchegante saco de dormir. Todo este tempo foi muito revigorante para mim, pois quando atleta de corrida de aventura (esporte composto de três modalidades, onde os atletas passam dias correndo, remando em caiaques e pedalando, em percursos não demarcados, utilizando como orientação mapas cartográficos), eu costumava dormir entre 20 e 30 minutos em cada soneca.
Às 10h04 da manhã de sábado me despedi da minha equipe de apoio, em direção ao último trecho da prova, a tão temida Serra da Luminosa. Saí bem alimentado e hidratado, e feliz de ter conseguido chegar bem até ali, sem bolhas, sem lesões. Lembrei de tudo o que passei até então, da dedicação das meninas que me davam o último "boa sorte", do paratleta Andre Kajlich, das crianças-anjos do Cantinho do Céu. Na última olhada para a barriga linda da minha mulher, lembrei que homem também chora. Fui.
Não sei de onde veio aquela força, que fez com que esse fosse meu mais rápido e intenso trecho (em 2h25min), com força total, e em grande e surpreendente velocidade. Me sentia assustadoramente bem, mesmo com o forte calor, e depois de já ter corrido 236 km até a minúscula Luminosa, último ponto de parada, e que à medida em que eu subia a Serra ficava menor, e menor, e menor. Talvez a intensidade natural do percurso, com suas araucárias, cachoeiras, vales e montanhas, tenha contribuído. Concluí a prova às 12h29 de sábado, com muita emoção ao lado da minha equipe.
Na Brazil 135+, tudo é amplificado: distâncias, subidas, temperaturas, sensações, dores, cansaço, emoções, união. Aproxima as pessoas, os atletas, as equipes de apoio, e todos os que passam pelo Caminho. Aliás, é o Caminho da Fé, sagrado por si só.
Terminei com o tempo de 52h29min (10 horas antes do tempo limite) e em 13º geral na categoria solo. Mas discordo do nome dessa categoria, pois é uma prova em equipe: a equipe de apoio é fundamental para o bem estar dos atletas. Eles também tem que lidar com a privação do sono, com o cansaço físico e mental, e se manterem firmes para tomadas de decisão e estratégias. O atleta não faz nada demais, só corre; a equipe de apoio praticamente o coloca na linha de chegada.
Equipe de apoio
Observação: dos 68 inscritos na categoria 260 km, apenas 22 chegaram até o final da prova.
Gostaria de agradecer algumas pessoas, pois sem elas eu não teria nem ao menos conseguido largar: minha equipe Bia e Dri, meu amigo Vitor Rage, meu treinador Rodrigo Inouye, meu primo-irmão Fredy Guerra, meu professor de yoga André Brochieri, Dani Gil, Xande Vianna, Naiara Faria Xavier e Fernanda Crysostomo (vocês são demais!), aos atletas e brothers Filipe Oliveira e Messias (e TODA sua equipe de apoio), e a meu pai, Jose Miguel. Todos tiveram uma contribuição crucial, da qual me lembrarei e agradecerei por toda minha vida.
Obrigado também a todos meus apoios e parceiros:
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Kailash Brasil
Top Diet
Drogalíder
E especialmente, a todas as pessoas que fizeram doações ao Cantinho Do Céu!
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